A ORIGEM DOS TRIPEIROS
A alcunha terá surgido quando as generosas gentes do Porto
ofereceram as carnes à Armada de Ceuta, em 1415, ficando com as tripas...
Tripeiro. Ao natural ou residente do
Porto é aplicada, desde há séculos, a alcunha de “tripeiro”. Porquê? Porque
come tripas, obviamente. De resto, entre a rica gastronomia da urbe, emerge
como o seu prato mais emblemático e identitário as “tripas à moda do Porto”. A
receita tradicional impõe que as tripas, de vitela, sejam bem limpas,
esfregando-as com sal e limão, sendo depois cozidas em água e sal. Mas este é,
apenas, o início de um laborioso e apetitoso processo que, até à sua concepção
final, fará juntar às tripas (os “folhos” e os “favos”) um conjunto muito
significativo de outras carnes, nomeadamente mão de vitela, chouriça de carne,
orelheira, salpicão, toucinho entremeado e frango. O manjar é, também,
devidamente confeccionado com feijão de manteiga, cenouras e alguma cebola.
Salsa, sal, pimenta preta (moída na altura), louro e alguma banha garantem, mas
também exigem, que se deixe apurar bem este prato. Fundamental, porque também
se come com os olhos, é que seja servido numa bela terrina de barro, polvilhado
com cominhos e salsa picada. E, também incontornável, que seja acompanhado por
arroz branco seco.
É um prato delicioso. Mas, recorrendo
às “tripas”, é também uma receita rara e sui generis que tem despertado a
estranheza e a admiração de quem, vindo de fora da cidade, se depara com esta
iguaria. Ora, tão exótico e singular prato tem que ter uma explicação. Nem que
seja lendária. E é o que realmente acontece desde há muito tempo.
Com efeito as tripas à moda do Porto
possuem uma lenda e são, segundo essa narrativa tradicional, resultado do
profundo envolvimento do burgo na expedição militar comandada pelo rei D. João
I que, em 1415, conquistou a cidade norte-africana de Ceuta iniciando, assim, o
processo da expansão marítima e colonial que caracterizaria o nosso país
durante os séculos seguintes.
Lenda à parte, os acontecimentos
históricos são relativamente bem conhecidos: rodeado de grande segredo, em 1414
o monarca decide organizar uma expedição a Ceuta com o objectivo de a
conquistar. Precisava para isso de um armada poderosa, tendo incumbido dois dos
seus filhos, os infantes D. Henrique e D. Pedro, para a organizar. D. Pedro
deveria preparar embarcações no Tejo, enquanto Henrique teria que fazer o mesmo
nos estaleiros do Douro. Há já 30 anos que o rei possuía uma relação muito
privilegiada com o Porto e sabia que poderia contar com o auxílio da cidade. Na
base desta relação encontrava-se, entre outros, o facto, não mais esquecido
pelo monarca, do apoio dos burgueses portuenses ter sido decisivo na sua
chegada ao trono durante a crise de 1383-85. Aliás, reconhecido por tal
auxílio, D. João I fizera questão de se casar no Porto com D. Filipa de
Lencastre e de, posteriormente, aqui lhe nascer um dos seus filhos: Henrique, o
mesmo que agora enviava, em missão secreta, a este burgo.
Não obstante desconhecerem qual o
objectivo final da tarefa que o trazia ao Porto, e que durante o ano seguinte
ocuparia uma boa parte da actividade da cidade, a chegada à urbe do jovem
infante, então com cerca de vinte anos, foi muito festejada por toda a
população, das classes mais modestas e populares - a “arraia miúda” – aos mais
influentes mercadores e poderosos burgueses. Além de ser filho do rei D. João,
o facto de Henrique ser, também, natural do Porto, certamente contribuiu muito
para esta forte empatia com as gentes da cidade. O Infante, nas palavras de
Zurara na sua “Crónica da Tomada de Ceuta”, «era mui amado delles todos e o
tinham casi por seu cidadaão».
Embora ignorasse qual o destino final
do numeroso número de embarcações que ia construindo nos estaleiros de Miragaia
e do Ouro, todo o Porto se entregou de um modo muito significativo ao projecto.
Além dos estaleiros junto ao Douro, também se envolveram nos trabalhos os
cordoeiros do Campo do Olival (mais tarde conhecido por Cordoaria)
manufacturando as cordas e cordoame necessários aos barcos, bem assim como os
ferreiros da Ferraria de Baixo, junto a Miragaia, produzindo os apetrechos
necessários às galés, naus, barcas e fustes que iam tomando forma nos estaleiros.
Outros confeccionavam os velames e, já nas periferias da cidade medieval, em
terras da Maia, Gaia e Bouças (Matosinhos), outros havia que preparavam as
provisões para uma numerosa frota que o Infante deu por concluída nos inícios
de Junho de 1415. A
armada zarpou da cidade no dia 10 desse mesmo mês e, à partida, era composta
por mais de setenta navios «afora outra muita fustalha». Poucos dias decorridos
deu-se a junção com a frota organizada no Tejo pelo seu irmão e, revelado
entretanto o objectivo da missão ao numeroso grupo de homens embarcados (vários
milhares, entre os quais muitos portuenses) cerca de um mês depois
consumava-se, com assinalável êxito, o assalto da cidade mourisca.
Mas, o que é que tudo isto tem a ver
com as tripas? É aqui que entra a lenda. Segundo a tradição, o Porto, além de
todo o trabalho na construção dos navios, forneceu também tudo o que tinha para
os mantimentos da frota. Nomeadamente carne. Todas as viandas que possuía
haviam sido limpas, salgadas e devidamente acamadas nas embarcações. A cidade,
sacrificada, ficara apenas com as miudezas, nomeadamente as “tripas”, e foi com
elas que teve que inventar alternativas alimentares. Surgia, assim, o prato das
“tripas à moda do Porto” que acabaria por se perpetuar até aos nossos dias e
tornar-se, ele próprio, num dos elementos mais característicos da cidade. De
tal forma que, com ele, nascia também a alcunha de “tripeiro” para os
habitantes do Porto.
Trata-se, obviamente, de uma lenda. Mas
tão profundamente enraizada na Memória Colectiva da cidade que, para muitos, se
trata de uma verdade inquestionável. O próprio monumento em bronze que o Porto
erigiu, em 1960, em memória da frota do Infante D. Henrique é disso mesmo
sintomático. Implantado junto aos antigos estaleiros do Ouro, no Largo António
Cálem, esta escultura da autoria de Lagoa Henriques, que evoca a cidade “que
lhe deu (à frota) navios, provisões e nela embarcou”, não deixa de representar,
entre duas figuras humanas, uma peça de carne esventrada, lembrando que por
aqui só restaram as tripas.
Trata-se de uma lenda. Evidentemente.
As origens deste prato, tão complexo, são seguramente bem anteriores e
implicaram um longo contexto cultural de aceitação e de prática culinária que
não podemos restringir a um único e episódico acontecimento, a um verdadeiro
epifenómeno, como foi o eventual esgotamento e desaparecimento de carne na
cidade durante o curto espaço de tempo que coincidiu com os preparativos da
armada de Ceuta e os meses que se lhe seguiram.
Trata-se de uma lenda. Mas, como todas,
tem também o seu fundo de verdade. Ou, pelo menos, pode fornecer algumas pistas
credíveis que importa valorizar. Neste caso o indiscutível empenhamento e
sacrifício que a cidade fez para corresponder ao pedido de apoio de D. João I e
do Infante D. Henrique nos preparativos do que viria a ser a arrancada da
expansão marítima portuguesa.
Mas, qual será, afinal, a origem das
“tripas à moda do Porto”?
É provável que tenhamos que recuar
muito mais no tempo para descortinar a génese deste prato. Até ao século I a.
C. E é possível que tenhamos que nos deslocar até à Suábia, uma região entre o
Reno e o Danúbio, no sul da actual Alemanha, numa zona de contacto com a
República Checa. Por essa época aí se localizavam tribos de um povo bárbaro
designado por suevos, motivo pelo qual esta região é também apelidada por
Suévia. Este povo confeccionava na sua dieta alimentar tripas (nomeadamente do
estômago) das ****s. E, ainda hoje, tal como no Porto, tais pratos fazem parte
da gastronomia tradicional da região (são as drzky, em checo). Ora, como se
sabe, após a queda do Império Romano, os suevos atravessaram a Europa, passaram
pela França (onde o “cassoulet” de Carcassonne, apesar de não ter tripas, é
muito parecido em tudo o resto às “tripas do Porto”), cruzaram demoradamente o
norte da Península Ibérica (onde ainda hoje são famosos os “callos asturianos”,
confeccionados com as tripas do estômago de vitela e feijão, muito semelhantes
ao prato portuense) e acabaram por se fixar no noroeste da Península, onde
estabeleceram um reino, sendo o Porto uma das suas principais cidades, chegando
mesmo a ser a capital.
Desta forma as “tripas à moda do Porto”
poderão remontar ao século VI e à época suévica. Ou será esta, na falta de
estudos histórico-gastronómicos mais aprofundados, uma tese condenada a ser
transformada, ainda que com uma faceta erudita e urbana, numa nova lenda?
Os portistas fazem questão de frisar a influência muçulmana em
Lisboa e até hoje se referem aos benfiquistas como “mouros”, em tom pejorativo.
Os benfiquistas, por sua vez, fazem referência à outra passagem da história de
Portugal, e chamam pejorativamente os portistas de “tripeiros”.
(Joel CLETO – Lendas do Porto: A Origem dos Tripeiros. O Tripeiro,
7ª série, vol. XXVII (7), Porto: Associação Comercial, 2008, p.210-211.)