terça-feira, 25 de abril de 2017
SÓTÃO DA MEMÓRIA
continuação
Viver a
cidade
A minha saudade aumenta, quando vejo
a cidade da
minha infância ficar descaracterizada, dia para dia mais impessoal e
principalmente a ficar desertificada. Quanto me dói a falta do verde, na
avenida dos Aliados ou nos Leões, trocada pela cinza do empedrado. Ou aquelas
casas entaipadas que vejo pelas ruas quase desertas. Ou ainda, a tristeza das
pessoa que têm que viver emigradas na sua própria cidade.
Este êxodo da população, levada a cabo desde
os anos 60 pela política de erradicação das “ilhas”, deu forma às ilhas ao alto
que são os bairros sociais, mas não se interessaram das raízes culturais nem
dos aspectos sociais dessas pessoas.
Esvaziaram o centro da cidade de gente, mas não
requalificaram, nem reconstruíram nesses lugares, casas para manter as pessoas
ligadas às suas raízes. Para ter qualidade de vida as pessoas devem ser felizes
e as ilhas, embora fossem lugares insalubres, as ilhas sempre foram a ligação dos
tripeiros ao seu bairro e á sua cidade.
As pessoas que habitam os bairros sociais,
tinham aprendido pela sua experiência, que podiam tirar desse ambiente adverso
em que viviam a sua felicidade. Levaram consigo os seus ideais de solidariedade
e de bairrismo com a necessidade de se associarem para compensar as suas
carências. Tentaram criar grupos desportivos, centros de convívio e outros, que
pudessem agregar pessoas à sua volta para colmatar a falta dos amigos e dos
vizinhos que deixaram ao serem separados do seu habitat. Alguns conseguiram,
mas a maioria desagregou-se e já não conheciam ninguém como os vizinhos e
amigos de tantos anos. Acabaram os grupos excursionista, o clube de futebol, os
amigos do tasco e a caixa de vinte amigos.
Arrumaram a cidade para debaixo do tapete,
como fizeram com grande parte do bairro da Sé para dar lugar á avenida da Ponte
que ainda hoje continua com a escarpa como ruína. Muitas vezes o Porto foi
governado, por quem não teve a sensibilidade de entender o bairrismo, essa
palavra que muitos hoje acham “pirosa” e sem sentido, porque não conhecem o
orgulho que sentem as pessoas da Lapa, de Aldoar, das Eirinhas, da Fontinha, da
Sé, de Miragaia, da Vitória ou de Paranhos, em serem desses lugares.
continua
segunda-feira, 17 de abril de 2017
SÓTÃO DA MEMÓRIA
continuação
Vi desaparecer ao longo do tempo, muitos
locais da minha infância, onde joguei à bola, como a Quinta Amarela nas Antas.
Onde vi o circo como o Campo do Luso. Onde vi ciclismo como o Estádio do Lima.
Salas onde mais tarde vi cinema, como o Central Cine da Carcereira, o Odeon em Pinto Bessa, o Vitória
na Circunvalação, o Cine Foz junto ao castelo e ainda, o Águia D’ouro, Olímpia,
Vale Formoso, Trindade, Carlos Alberto, Terço, Júlio Dinis e muitos outros.
Cafés que foram pontos de encontro na baixa
portuense, autênticas tertúlias de amigos em tempo de liberdade proibida, como
o Palladium onde se jogava ténis de mesa, bilhar, damas e até tinha barbearia.
O Astória, sala de visitas para quem chegava ao Porto pela estação de S. Bento.
O monumental café Imperial que é hoje a MacDonal’s (mudança directamente
relacionada, com a perda de influência do Porto enquanto centro de negócios, se
até bancos, companhias de seguros e outras instituições foram deslocadas para
Lisboa!) O Rialto frequentado por Egito Gonçalves, Papiniano Carlos, Daniel
Filipe, Rebordão Navarro. Na mesma Praça de D. João I, havia o Odin que veio
para S. Brás e era o café dos salgueiristas, muitos, muitos cafés que faziam
parte do património cultural desta cidade.
Cafés que também tinham engraxadores (que ás
vezes eram bufas) e tabacarias onde não se vendiam isqueiros a quem não tivesse
licença. Era um Porto amordaçado, mas que a nossa imaginação não deixava
morrer, como no café Cidade Nova em Costa Cabral, onde alguns amigos se juntavam
depois de todos lerem o último livro da colecção “Vampiro” (sem as últimas 5
folhas), para adivinharem por dedução, o final do livro policial.
Também existiu esplanada da “CUFP” que
acabou (quando a fábrica da cerveja mudou para a Maia e é agora a UNICER), era ali
junto à Praça da Galiza, onde se bebiam aquelas canecas gigantes de cerveja (as
Girafas) e era muito frequentada pela malta que estudava como eu à noite, na
escola industrial Infante D. Henrique.
Para os “Pregos em pão”, a malta tinha o
café Pereira no Marquês. Para as Francesinhas, além da Regaleira (casa onde
nasceram na década de 60 no Bonjardim), havia o Mucaba em Gaia e o café
Portugal em Costa Cabral,
que já não existem.
O Porto sempre foi especial na sua
gastronomia, não se pode esquecer que foi nesta cidade que nasceram também o
Bacalhau à Gomes Sá, criado pelo portuense José Luís Gomes de Sá Júnior
falecido em 1926.
E claro, temos as afamadas
Tripas à Moda do Porto de onde herdamos o nome de “Tripeiros” desde que demos
ao Infante todas as carcaças das reses para a campanha de Ceuta e só ficamos
com as tripas para comer.
Mas voltando aos cafés antigos, mesmo os
cafés que ainda resistem, como o Aviz, o Ceuta, o Progresso, o Estrela, ou
ainda o Guarany, o Majestic e a (remodelados) A Brasileira que se foi… Ainda o
Piolho, o Embaixador e outros, sentem imensas dificuldades, pois já pouca gente
mora na cidade e ao fim da tarde, quando encerram todos os estabelecimentos, o
Porto fica um deserto. Salva-se a “Movida” aos fins-de-semana.
Longe vai o tempo em que o Sérgio Godinho
(que também nasceu no Porto) cantava: Ai,
eu estive quase morto no deserto / E o Porto aqui tão perto...
continua
terça-feira, 11 de abril de 2017
SÓTÃO DA MEMÓRIA
continuação
Éramos felizes, quando corríamos pelas ruas
de número nas costas preso com alfinetes e guiador de arame debruado a fio de
cor, imitando os ciclistas na Volta a Portugal. Quando juntávamos cromos de
jogadores para colar na caderneta e jogávamos ao “virinha” com os repetidos.
Para isso, batíamos com a mão em concha tentando virar os cromos e quando o
cromo ficava em pé encostado a qualquer coisa, era “Esquinete”, mas quando
alguém cuspia na mão para colar ao cromo, era batota. Passávamos horas a ditar
uns aos outros os repetidos que trazíamos numas carteirinhas de cartão com
fitas de nastro feitas por nós e que dobravam e abriam para os dois lados.
Também com os repetidos metidos numa cova, jogávamos à “Coca”, atirando contra
a parede uma moeda previamente côncava, tentando ficar o mais perto possível da
cova. Também juntávamos os “Vitórias” com a esperança de obter um carimbado (o
cabrito, a cobaia ou bacalhau), que vinham embrulhados em rebuçados a dois um
tostão e que podíamos ganhar uma bola de couro, quando conseguíamos encher a
caderneta. Às vezes as moedas que ganhávamos num recado feito às vizinhas, eram
desviadas para a confeitaria, para comprar “Raleio” (que eram restos de pasteis
e bolos que ficavam nos tabuleiros), ou então para a compra do Mosquito no
quiosque do Melo.
Era uma festa dos afectos, quando meu pai
nos aconchegava a roupa da cama, beijava-nos a testa afagando-nos o rosto e
dizia: “Portem-se bem, não arreliem a vossa avó que está velhinha e cansada,
ela tem-me ajudado muito a criar-vos, desde que a vossa mãe nos faltou.”
Também era uma festa, aquelas manhãs de
domingo no verão, em que ia com meu pai e meu irmão no “17” até á praia do
Molhe, brincávamos na areia enquanto ele lia o jornal no banco de pedra que
ainda lá está no paredão. Voltávamos à hora de almoço, cheios de apetite para o
cozido.
Durante estes passeios de eléctrico, meu pai
contava-nos acontecimentos sobre os lugares por onde passávamos, ensinando-nos
muitas coisas. Lembro-me, ao passar no Pinheiro Manso, nos falar do ciclone de
Fevereiro de 1947 (um sábado), que derrubou um enorme pinheiro que lá havia.
Disse-nos ainda: Que a primeira linha de eléctrico do Porto, foi a da
Restauração em 1895; Que em 1855 teve inicio na cidade a iluminação pública a
gás; Que só em 1888 foi inaugurada a rede de distribuição de energia a
particulares e que a rede de esgotos só foi instalada no Porto em 1907.
Contava-nos feitos históricos, como a dos obeliscos que estão no jardim do
Passeio Alegre, que vieram da Quinta da Prelada e por entre eles passaram os
7.500 soldados do exército liberal, os bravos do Mindelo. Eram lições de
história, esses passeios com meu pai. Tenho a certeza que foi ele que incutiu
em mim, este interesse, admiração e amor pela minha cidade.
continua
segunda-feira, 3 de abril de 2017
SÓTÃO DA MEMÓRIA
continuação
Outros dias de festa
Outros dias festivos eram nas férias da
escola, os passados na Colónia (porque tive o privilegio de num ano, o
sindicato a que pertencia o meu pai ter essa regalia). A Colónia era junto aos
Socorros a Náufragos no Castelo da Foz, lá andávamos de babeiros às riscas e
panamá, brincando no areal da praia dos Ingleses com baldes, pás e ancinhos de
chapa. Os jogos de praia eram nesse tempo, as construções na areia, o “Prego”,
o “Anel” e o “Tesouro dos Piratas”.
Festa? Eram os dias de aniversário,
principalmente os meus inesquecíveis seis anos, quando o meu pai me levou pela
primeira vez ao cinema, ver o “Marcelino Pão e Vinho” no Coliseu com Pablito
Calvo. Depois fomos ao café Palladium (onde quase trilhava os dedos nas portas
giratórias que nunca tinha visto), para comer uma torrada e um copo de leite.
Mas o melhor desse dia, foi ao jantar, a minha avó deu-me bife com batatas
fritas e um ovo estrelado. Foi um dia memorável.
No fundo, todos os dias eram de festa nas
brincadeiras de rua com os meninos como eu: Jogando a bola de trapos, a
casquinha, o hóquei com troços de couve, o peão, a sameira, á corda queimada,
ás escondidas, aos Cow-boys, à Cabra cega e aos policias e ladrões.
Quem do meu tempo, não se lembra daquela célebre
lenga-lenga:
Aniki
bó-bó / Aniki baú-bau / Passarinho totó
Cheribau,
Cavaquinho / Salomão, São cristão
Policia
/ Ladrão
Também brincávamos com as meninas às
“Casinhas”, às rodinhas cantando o Manel Tim-Tim que era assim:
Ó
Manel tim-tim / Ó Manel tim-tão
Dá-me a canastrinha / Dá co’cu no chããão
Ou a Machadinha que era assim:
Ah
ah ah minha machadinha
Quem
te pôs a mão sabendo que és minha
Sabendo
que és minha também eu sou tua
Salta
machadinha p’ró meio da rua
Com as “catraias”, também fazíamos jogos
como: Farinha olé, Prendinhas do Sr. Abade, Minha mãe dá-me licença? Reis e as
Rainhas ou ao Bom Barqueiro. Esta brincadeira consistia em dois de nós de
braços levantados e dando as mãos, formar um arco por onde os outros passavam em
fila atrelados às ancas a cantar:
Bom
barqueiro, bom barqueiro / Deixa-me passar
Tenho
filhos pequeninos / Não os posso criar
A que os dois barqueiros respondiam:
Passarás,
passarás /Mas algum ficará
Se
não for o da frente / Há-de ser o de trás
E fechando o arco, aprisionavam o último da
fila que se posicionava atrás de um dos barqueiros. Assim sucessivamente até
que no final, cada barqueiro com a sua equipa puxavam com força, agarrados às
ancas uns dos outros, até conseguirem separar o arco original.
continua
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