terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

COISAS E LOISAS




SÓTÃO DA MEMÓRIA




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Ao lado do hospital da Lapa, era a rua de Salgueiros (hoje rua de Cervantes), onde além da ilha de Salgueiros, bairro operário onde vivia muita gente, existe a Fonte de Salgueiros a que chamávamos o tanque. Aí tomávamos banho nas tardes de calor, depois de jogar á bola de trapos. O nosso “campo da bola”, para mal do Camilo da mercearia, era no largo ao fundo da rua da Glória, onde tinha o chafariz encostado ao muro do hospital e acabava o muro com uma rede alta que dava para o local escarpado a que chamávamos “Quintinhas”. Desse local avistávamos as Águas Férreas, a Figueirôa, a Carvalhosa, a linha do comboio da Póvoa (hoje do Metro), a “Tutoria” (hoje tribunal de menores), com o seu campo de futebol que por ser mais estreito dum lado, lhe chamávamos o campo do bacalhau. Era uma vista soberba que em dias de Outono, com as árvores do jardim da Boavista despidas, ainda se podia ver a monumental estátua à Guerra Peninsular, de autoria do arquitecto Marques da Silva e do escultor Alves de Sousa.
Parte da rua Sr.ª. da Lapa é ao longo do muro do hospital e só tinha casas dum lado. A um lote dessas casas todas iguais, chamávamos “Casa das Varandas”, onde por baixo havia a loja das miudezas (retrosaria) da dona Aurora. Havia também as mercearias do Marques, do Adérito e lá na esquina da Lapa a mercearia fina do Pina, onde a Zirinha no passeio punha banca de hortaliças aos fins-de-semana e no verão, muitas mulheres vendiam mexilhões, lapas e tremoços. Às vezes havia um sorveteiro, com sorvetes de sabor a baunilha ou chocolate. Por vezes também lá estava o Alberto bananeiro com a padiola das bananas. 
Eram ruas com gente boa, prestável e muito amiga. Não é como os tempos de hoje que ninguém se conhece no prédio onde mora. Os vizinhos tinham uma importância muito grande, eram como família quem nos socorriam nas horas más e festejavam nos momentos de felicidade.
Lembro-me de muitas pessoas boas, mas existiam aquelas que nunca esquecemos como: A Dona Leonor que era enfermeira e dava injecções de graça; A irmã da Julinha peixeira que talhava o medo com orações e as bichas (que deformavam o rosto) com leite, ainda cosia os pés “estorcegados” com um pote de barro e com uma faca, rezava às estrelas para talhar os “treçogos”.
Depois, lá na minha rua havia de tudo: O Mário estofador que era filho do Arnaldo sapateiro; O Mesquita que trabalhava na refinaria da SONAP e era pai dos gémeos; O pai do Ervilha e do Berto que era alfaiate; Outro alfaiate era o Henrique onde a Emília era calceira; O Amaral pai da Branca, que era adeleiro em Mártires da Liberdade; O Alfredo Borges campeão de natação do Sporting Clube da Lapa que era litógrafo e foi o padrinho do meu irmão; O Jaime bombeiro nos Sapadores que tinham o quartel em Gonçalo Cristóvão antes de irem para a Constituição.

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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

COISAS E LOISAS




SÓTÃO DA MEMÓRIA


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Do bairro da Lapa, fazem parte a rua e travessa da Sra. da Lapa, a rua e calçada do Monte da Lapa, a rua e travessa, escadas e largo da Lapa, lugares de onde guardo muita saudade.
Ao passear a lembrança pelas minhas raízes posso ver ainda todas as “ilhas”, aqueles pátios cercados de modestas casinhas, algumas airosos com vasos de avenca, begónias e sardinheiras ás portas. Pelas paredes brancas e ocres, viam-se andorinhas de barro e azulejos com quadras populares. Outros pátios eram húmidos e recônditas onde nem o Sol chegava. As ilhas mais conhecidas da minha rua tinham sempre o nome da pessoa mais carismática que lá morava, era a ilha do Cego, do Almeida, do Cocas, da Zirinha, da Amélinha, do Capelas, do Oliveira, do Leites e tantas, tantas por onde brinquei na minha meninice e fugi descalço á policia, nesse tempo em que a multa por andar descalço, eram de oitenta escudos com uma coroa.
Recordo no começo da rua Antero de Quental, na esquina do Monte da Lapa, a Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro que o Senhor Correia alfaiate e a família zelavam, foi mesmo com uma das filhas que lá aprendi a catequese e era a sua esposa que levava de casa em casa, o altar da Sagrada Família como era uso naquele tempo. Na rampa, vivia o Mário Rui que tinha criada para o levar á escola, mas que repartia comigo o lanche que trazia num guardanapo bordado (assim como, ficava na fila para receber o pão só para me dar depois).
Ainda mais acima, na calçada do Monte da Lapa, vivia numa casinha modesta o Carmo que ficou sem o pai no desastre de Custóias. Bem lá no alto está o Mirante (como lhe chamamos), local onde a bateria da Glória, no tempo do cerco do Porto, num fogo cruzado com a bateria do Monte Pedral, impediram uma esmagadora derrota das tropas constitucionais a 9 de Setembro de 1832. O mesmo voltou a acontecer no dia 16, havendo a lamentar o incêndio que destruiu a bela casa e a capela da Quinta do Covêlo.
Defronte à capela, ficam as escadas da Travessa da Lapa que termina na travessa de S. Brás, defronte duma oficina de picheleiro onde trabalhava o Mário canalizador. A rua de S. Brás que tinha a maioria das casa mais baixas que a rua (como acontecia numa boa parte da rua de Camões), vem dar á rua do Paraíso junto ao largo da Lapa. Depois da escadaria da Igreja, naquele passeio largo defronte ao cemitério, era onde fazíamos corridas com carros de rolamentos e deitávamos estrelas ao vento. Nas traseiras do quartel, ainda existe um enorme portão, onde naquele tempo, os mais pobres munidos de panelas e tachos, faziam fila esperando os restos do “rancho”.
Do lado direito do quartel, fica a rua da Regeneração onde está a garagem da Lapa e a casa de pasto Piramidais á esquina da travessa da Regeneração. Esta ruela que se estreita até se transformar por um lado, numa viela que acaba na rua de Camões junto ao fontanário e por outro no final da ilha que tinha o seu começo na rua do Paraíso e que já não existe. Toda essa gente que ali vivia foi para os bairros do Carriçal e do Agra do Amial. Amigos como o Sérgio, o Fernando e o Manuel Cardinal, que ainda hoje os encontro pelo Fado Vadio. Naquele tempo, a rua do Paraíso era uma rua cheia de árvores, onde havia uma padaria com a frontaria lindíssima em azulejos, havia o “Prego” (casa de penhores), que pertencia ao Sr. Reis (pai do actor António Reis) e onde tantas vezes fui com a minha avó empenhar o fato de meu pai á segunda, para levantar à sexta. Junto à entrada da maior ilha da rua, estava o tasco “A Flor do Paraíso”. Havia também o Azeiteiro que tinha uma bomba de manivela (como as de combustíveis para motorizadas), sobre o balcão, para medir e vender o azeite. 
A rua da Lapa também com muitas árvores, tinha argolas de ferro na parede do quartel que já foi de cavalaria e onde antigamente prendiam os cavalos. Esta rua termina no largo da Lapa e começa na praça da Republica á esquina da rua da Boavista, onde está o antigo café que se chama “Novo”. Esta rua, era a mais central do bairro com muito comércio, desde o relojoeiro que tinha um relógio de dupla face na frontaria, até ao café e confeitaria Cristal (que foi a primeira a ter televisão e a miudagem pagava dez tostões por um copo de leite, para ver os desenhos animados ao domingo), passando pela afamada Rosa das Iscas, a tabacaria do Campo (Campo porque a praça da Republica aberta em 1760, se chamou em tempos, Praça de Santo Ovídio e depois Campo da Regeneração), a drogaria do Pretinho da Lapa e a tabacaria do Melo na esquina do jardim frente ao quartel e a papelaria do Campo onde comprava-mos (quando podíamos), as construções de armar em cartolina, o Mosquito, o Mundo de Aventuras, o Ciclone ou o Mickey e os cromos dos jogadores.

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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

COISAS E LOISAS




SÓTÃO DA MEMÓRIA



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Depois de mais este passeio pela memória, volto à Irmandade da Lapa para vos falar do Cemitério privado que é dos primeiros da cidade e foi inaugurado em 1838. Já em 1833 a Irmandade mostrava interesse em construir um cemitério moderno, pois com a situação deixada pelo Cerco do Porto era difícil conter o surgimento de epidemias muito mortíferas. Foi necessário recorrer ao chão de algumas igrejas que nem estavam totalmente construídas como foi o caso da Trindade.
Numa situação de transição, foi preciso estabelecer um cemitério interino, por detrás da capela-mor da Igreja da Lapa. O cemitério actual foi começado a construir em 1835 e nele repousam os restos mortais de Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett, Coronel Pacheco, Soares dos Passos, entre outras figuras célebres desta cidade das camélias, das sardinheiras e acácias, a nossa “Mui Nobre e Sempre Leal a Invicta Cidade do Porto”. 


O Meu bairro


A Lapa pertence à Freguesia de Cedofeita, uma das freguesias mais burguesas do burgo tripeiro, mas sempre teve nos seus limites, bairros de operários de gente modesta e muito bairrista, como a Lapa com suas ruas, escadinhas e vielas. Eu nasci na rua da Glória que tem a sua história ligada ao Cerco do Porto, foi assim:
«Tanto Miguelistas como os Constitucionais, partidários de D. Pedro IV, construíram em redor da cidade as suas linhas de defesa. Dentro dos limites da freguesia de Paranhos, a linha fortificada dos Liberais passava pelo Carvalhido (daí o nome da praça do Exercito Libertador), fortes de S. Paulo, da Glória e de S. Brás, quartéis do Monte Pedral, baterias de D. Pedro e Aguardente (Marquês do Pombal) e das Medalhas. Redutos do Covêlo e das Antas. A bateria da Glória, defendia os vales de Paranhos e Regadas, tendo em frente dela, a bateria das medalhas, dominando o vale de S. Mamede. Esta bateria das Medalhas situava-se entre o Monte Pedral e a rua de Monsanto, tomou este nome pelas muitas condecorações que ganharam os seus defensores, na acção de 9 de Setembro de 1832. Só muito mais tarde nasceu esta rua, no local onde estava a bateria e que ainda existem vestígios no Monte da Lapa.

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terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

COISAS E LOISAS




SÓTÃO DA MEMÓRIA



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Da Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, instituída em 1755 pelo Papa Bento XIV, fazem parte além da Igreja e do Hospital, o colégio da Lapa onde Ramalho Ortigão foi professor de francês e o pai, Joaquim da Costa Ramalho director.
Também Eça de Queirós foi aluno interno após a morte da mãe. Aliás, neste lugar da cidade viverem muitos homens de letras, o próprio Ramalho Ortigão residia na Quinta de Germalde na Lapa, Antero de Quental ali perto no Campo da Regeneração e até o filosofo Oliveira Martins na Casa de Pedra na rua das Águas Férreas. O Colégio era um lugar para algumas elites e por isso, eu nunca o poderia frequentar. Apenas fui crismado na igreja e lá fiz a comunhão solene.
A minha instrução primária foi feita na Escola nº 61 em Faria Guimarães, onde fui aluno do severo professor Quaresma. Naquele tempo, havia muito respeito pelos professores que eram como nossos segundos pais. Tudo se levantava quando ele ou alguém entrava na sala. Claro que na parede por cima do quadro, lá estava os senhores da ditadura, Salazar e Craveiro Lopes e entre eles o crucifixo. Ao canto da sala, não faltava o escarrador e o banco alto dos burros.
Não se pode concordar com alguns métodos de ensino dessa época, no entanto hoje, passou-se de um extremo para outro. Nem tudo que se aprendia era muito importante, como as linhas do caminho-de-ferro, mas saber as serras, rios e seus afluentes, a história de Portugal, ciências do corpo humano e a tabuada, foi fundamental para a malta do meu tempo. Por isso se diz que a 4ª classe antiga é igual ao 7º ano hoje. Aquela cantoria para aprender a tabuada era eficaz, assim como a vantagens dos livros passarem de irmãos para irmãos.
)blet daquela  A primeira saca que tive para levar os cadernos, o livro, a lousa, a pena e caneta de aparo, era de pano e tinha bordado: “Segue sempre o bom caminho”. Depois tive uma de cartão com uma fita para pôr ao tiracolo, castanha por fora e a azulada por dentro, a tampa era ovalada e tinha um fecho cromado. Das coisas que mais gostava, além das aulas em geral, era daquela sopa e do pão escuro feito na Legião Portuguesa e que davam lá na escola. O que menos apreciava era o óleo de fígado de bacalhau que nos obrigavam a tomar, e ainda de aos sábados de manhã, ter que cantar o hino da mocidade, mas pior ainda, eram as casas de banho que eram de cócoras.
O exame de prova oral e escrita da 4ª classe, foi feita na escola de Sto. Ildefonso que já não existe (hoje é o edifício da Junta), na esquina de Gonçalo Cristóvão com o Largo do Bonjardim. Ao lado, havia a escola Raul Dória que foi demolida para dar lugar ao edifício JN. A escola em Faria Guimarães também não existe, no seu lugar está um prédio com uma confeitaria. Mas tudo isto foi pelos finais dos anos 50, em que me lembro de ir de bata branca e bandeirinha na mão, com todos os alunos, aplaudir a Rainha Isabel de Inglaterra à praça da Republica. Estávamos em 1957 e só em Agosto de 1960 voltei para aplaudir na praça, o Joscelino Kubitschek de Oliveira presidente do Brasil, um democrata elegante que alegremente agradecia os aplausos em contrastando com o semblante carregado de Américo Tomás. 

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