segunda-feira, 27 de março de 2017
SÓTÃO DA MEMÓRIA
continuação
Também haviam homens que vinham da Régua com
os cestos de rebuçados e na Primavera, vinham mulheres de Gaia vender
“Camarinhas” que apanhavam no areal do Senhor da Pedra. Em Maio as vendedeiras
de fruta traziam cereja de Resende, pêssegos do Douro e ameixas vermelhas, bem
melhores das que apanhávamos das árvores do jardim da Praça da Republica. Neste
jardim do “Campo”, assim como no de Arca de Água e do Marquês, o SNI
(Secretariado Nacional de Informação, organismo criado durante o Estado Novo),
organizava durante o verão, sessões de cinema ao ar livre. Sentado na relva nas
noites de calor, vi: “O Cerro dos enforcados”; “Os Saltimbancos”; “Frei Luís de
Sousa”; “Os Três da Vida Airada” e muitos outros filmes portugueses. Também
cheguei a ir com a minha avó, ouvir a “Música do pau teso”, como ela chamava às
bandas que tocavam no coreto do Marquês, enquanto nos bancos do jardim, as
“Sopeiras” e os “Magalas” namoravam.
Mas tudo isto foi no tempo em que se fumavam
Definitivos, Provisórios, Paris, Três Vintes e outros que se vendiam avulso nos
quiosques. Em que haviam jornais a 10 tostões como o J.N., Comércio do Porto, O
Primeiro de Janeiro, Norte Desportivo e o Diário do Norte. Em que haviam
revistas como O Século Ilustrado, Crónica Feminina, Modas e Bordados, Flama,
Plateia e muitas outras que o Estado Novo nos impingia. Nessa altura, os livros
do Vilhena eram proibidos e nem sei como se vendia o Cara Alegre que às vezes
trazia anedotas com desenhos de mulheres que nos deliciavam.
Nesse tempo, os nossos heróis eram O Mandrake,
o Mascarilha, o Davy Crockett, o Buffalo Bill, o Príncipe Valente e outros que
se lia aos quadradinhos no Ciclone, no Condor, no Mosquito, no Falcão, no Cavaleiro
Andante e nas bandas desenhadas dos jornais, como o “Reizinho” do Primeiro de
Janeiro, que eu recortava e colava tira a tira com sabão, para dar cinema numa
caixa de sapatos com uma manivela de arame e cobrava aos outros a entrada na
ilha a dois botões. Sim porque qualquer coisa servia para brincar, com um
simples fio estávamos horas a brincar à cama do gato. Com um caco riscava-se no
passeio um quadrado e diagonais para jogar às pedrinhas ou com regos na terra
se faziam corridas com sameiras (caricas é em Lisboa) que para se tornarem mais
pesadas se punham casca de laranja. As meninas jogavam à macaca ou às cordas,
mas... Sempre ao ar livre, nunca como hoje sentados nos sofás agarrados às
playstations e às Tabletes com vídeo games.
continua
terça-feira, 21 de março de 2017
SÓTÃO DA MEMÓRIA
continuação
Em casa, o caneco da água tinham uma tampa e
um púcaro de alumínio pendurado para beber. Nesse tempo, havia prateleiros nas
cozinhas decorados com tiras de papel estampado com diversos motivos florais. A
minha avó fazia-os com jornal, pacientemente recortado a imitar renda. Havia
fogões a carvão como o de lá de casa e aos sábados (depois do meu pai receber),
ia-mos ao carvoeiro comprar petróleo e álcool para a máquina, carqueja, carvão
de choça, de pedra, briquetes e lamas para abafar os assados. Este carvão vinha
até às Antas, no Monte Aventino, em cestas tipo teleférico, desde as minas de
S. Pedro da Cova. A carqueja era vendida também pelas carquejeiras que andavam
nas ruas, depois de a desembarcarem dos barcos no Douro e subirem a Rampa da
Corticeira até ás Fontainhas.
A carne comprava-se no talho da Lapa, acima
da mercearia da Pina e junto ao “Damaneto” (que vendia mobílias a prestações),
ou no talho do Zé à entrada de Mártires da Liberdade, pegado ao portal (onde
mais tarde foi o Salão de Baile “ Japoneza) e onde a Guidinha apanhava malhas
nas meias de vidro. Ás terças, passava a Emilinha “Fressureira” que era do
Campo Lindo e vendia de porta em porta tripas enfarinhadas, fígado e outras
miudezas a que se chamava fressuras. A pobreza em que se vivia não deixava
comer muita carne, os bifes eram raros, por isso naquele tempo haviam muita
gente com a saúde debilitada e em grande estado de fraqueza. Era um tempo de
muitas doenças e dos lenços tabaqueiros, suficientemente grandes e vermelhos
para camuflar as hemoptises da maldita tuberculose que minava a cidade.
Vendiam-se doces e biscoitos ao quilo, havia
mesmo uma mulher das Cruzes (para os lados das Barrocas), que vendia
“Caladinhos” (cornucópias recheadas de creme), mas a nossa predilecção ia para
o homem das farturas, com um carro de bicicleta que tinha vidros de correr como
uma montra, que cortava as farturas com a tesoura, polvilhava com canela e
açúcar para vender a cinco tostões. Ao descer a íngreme rua da Glória, a
preocupação maior deste homem, era travar bem o carro, para não acontecer como
o Fausto varredor da câmara, a quem destravaram a carroça do lixo e o
desgraçado do cavalo foi morrer contra o muro do hospital (sim, porque nesse
tempo os carros do lixo eram carroças).
Nos dias de muito calor vinha um homem da
Areosa que vendia água fresca da Fonte dos Cortiços, trazia um cântaro de barro
coberto com eras pendurado ao ombro por uma correia de cabedal. No Outono, não
faltavam os vendedores de castanhas com cestos e saco de serapilheira e os “Castanheiros”
que as assavam no carvão e ficavam cinzentas do sal. Na esquina do jardim do
Marquês com João Pedro Ribeiro, mesmo à porta do Asilo do Terço (onde havia uma
sala de cinema coberto com uma lona e que nos dias de chuva vinham homens, no
intervalo do filme, com uns paus empurrar a lona para escorrer a água da chuva
que empossava), havia um assador de castanhas do feitio de uma máquina do
comboio, que misturava o fumo com o nevoeiro da cidade e era lindo de ver...
continua
terça-feira, 14 de março de 2017
SÓTÃO DA MEMÓRIA
continuação
Havia ainda o amolador e guarda-soleiro, com
aquela gaita-de-beiços em plástico, a bicicleta que ele transformava em roda
livre para afiar as tesouras e facas no esmeril. Este velocípede era uma
verdadeira oficina ambulante, onde o funileiro com habilidade conseguia tapar
buracos nos tachos e nas panelas de alumínio.
Recordo comovido, uma mulher magra de xaile
preto e um filho pela mão, que trazia uns galhos enormes ainda com rama na
ponta e que apregoava numa voz fraca: “Chaminééés...” Mas que nada tinham a ver
com os homens chamados “Limpa chaminés”, esses, traziam umas cordas ao ombro e
andavam sempre de fato-macaco sujo de fuligem. Também de cordas às costas e
boné com uma placa onde tinha gravado o seu número de profissional, andavam os
“Carrejões” ou carregadores que fazia carretos e fretes, transportando bagagens
e peças de mobiliário. A maior parte desses homens eram galegos e passavam o
dia junto às estações de Campanhã, S. Bento e Trindade, na Praça Filipa de
Lencastre junto às camionetas de Braga, em José Falcão no
Linhares da Póvoa, na garagem Atlântica das camionetas de Espinho, na rua de
Camões nas camionetas de Felgueiras e de Paços de Ferreira, que paravam no
largo das traseiras do “Bonnevile de Oliveira” e outros locais como os
recoveiros espalhados pela cidade. Também com bonés com chapa numerada, andavam
os cauteleiros que vendiam a lotaria pelas ruas e apregoavam a sorte grande
pela baixa onde também andavam homens a vender gravatas num pau pendurado ao
pescoço, que fazia de expositor.
Na Trindade, junto à viela do Bonjardim (aquela
onde tinha um urinol em pedra), havia o homem das canetas numa banca onde
arranjava todo o tipo de aparos para as canetas de tinta permanente. Quase na
esquina da rua Fernandes Tomas, havia um cinzelador numa janela, cinzelando a
prata colada à pedra com breu e que delicadamente com o buril ia gravando
lindos motivos e desenhos. Outros artistas que me fascinavam eram os
marmoristas nas oficinas de Mártires da Liberdade e Avenida Rodrigues de
Freitas. Eram autênticos escultores trabalhando o mármore, de onde saíam anjos
e outras figuras que embelezam muitas sepulturas nos cemitérios e não só.
Haviam os homens da Água e da Electricidade,
que cobravam e contavam (com uma pilha), a luz e a água, embora fossem poucas
as casas que tinham estes “luxos”, a maioria na minha rua, tinha candeeiros e
máquinas de petróleo da “Hipólito” para cozinhar. A água vinha à cabeça em
canecos de madeira do fontanário do largo. Esta água era abastecida pela
câmara, mas na fonte de Salgueiros passavam as águas do Ribeirinho (nascente
dos Montes de Germalde e do Cativo), que enchiam o tanque da “Fonte dos
Ablativos” em Cedofeita enfrente à rua da Torrinha (esta fonte encontra-se
exposta no Jardim dos SMAS em
Nova Sintra) e tinha a dupla função de servir de
abastecimento público, funcionando ainda como reservatório para ser utilizada
em caso de incêndio.
continua
segunda-feira, 6 de março de 2017
SÓTÃO DA MEMÓRIA
continuação
Recordo-me bem do Senhor António
guarda-freio na Carris e pai da Aida; O Neca que tinha uma irmã muito linda,
que trabalhava ao balcão na Loja das Coisas em Fernandes Tomás.
Ele cantava canções sul-americanas e formou o trio Boreal com
a Luísa Salgado que era da Fontinha e o Castelo Branco da Vitória. O Zeferino
Pinto que fundou o trio, “Os 3 de Portugal” e moravam em Salgueiros: O Xavier
do Comércio do Porto: O Laguela canalizador: A Loscas costureira que era mãe do
Zequinha e tinha “Torry” no nome, descendente afastada de um braço genealógico
dos “Torry’s” ingleses: O Pirata, electricista que moravam enfrente à ilha do
Cego; A Sãozinha do tasco que era mãe do Filipe: O Júlio e o Alexandre da
mercearia: O Amaral carvoeiro pai da Mariazinha e do Neca; O Zé da barbearia; O
Argentino pai da Alexandra, que escrevia cartas a quem era analfabeto e
preenchia papéis da Junta quando era preciso pedir um atestado de pobre.
Havia a oficina do Manel dos chapéus
defronte à ilha do Miranda, onde morava o Filintro que trabalhava no cinema
Júlio Dinis. Também havia a oficina do meu pai, que fazia casinhas, pontes,
coretos, castelos e igrejas para as cascatas de S. João, caixas de jóias e de
costura, até caixinhas para amêndoas pela Páscoa. No Natal fazia presépios com
telhados de colmo e manjedouras com espigas (esta palha era tirada das
coberturas de garrafas de vinho do Porto que haviam na altura), tudo isto numa
casinha que alugou no bairro “Angelina” que depois vendia para o Bazar dos Três
Vinténs em Cedofeita, para a Casa Ametista nos Poveiros e os presépios, nas
casas de artigos religiosos em Mouzinho da Silveira e na rua das Flores.
Gente desse tempo
Nesse tempo, ouviam-se pregões pelas ruas
das mais diversas coisas, desde guloseimas até aos artigos mais inverosímeis.
Ouvia-se as mulheres que vinham de Rebordosa apregoando: “Merca cadeiras ou
baaaancos...” em madeira de pinho, como os que se vendiam na rua da Picaria. O
Caramileiro que vendia o “Torrão de Alicante” (que ficava preso aos dentes) e
aqueles cumpridos de cor branca com riscas vermelhas e apregoava: “Olha o belo
caramilo americaaano...”. As Vareiras (varinas é em Lisboa), de canastra à
cabeça com um oleado e algibeira atada à cinta que apregoavam: “Sardinha
viviiiiinha”. As galinheiras com seus cestos de rede à cabeça apregoando:
“Merca galinhas ou fraaangos”. As leiteiras, que logo pela manhã andavam de
porta em porta com o “canado” e as medidas de alumínio, com que mediam o o
leite. As lavadeiras, que faziam o rol da roupa que lavavam e traziam lavada e
vinham da Maia com as trouxas nas camionetas da carreira, aquelas que tinham
escadas atrás para subir ao tejadilho e acomodar a bagagem. O azeitoneiro que
trazia um pau ao ombro com uma giga de cada lado cheias de azeitonas e
apregoavam: “Olha a bela azeitoooona”.
continua
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