segunda-feira, 29 de maio de 2017

SÓTÃO DA MEMÓRIA




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O resto dos dias de Dezembro, eram passados numa ansiedade constante á espera da grande noite. Ficou-me até hoje essa sensação boa que me traz o Natal, não pela sua vertente religiosa (que me perdoem os crentes), mas pelo sentido humano da união familiar, o carinho, os afagos do meu pai, pela harmonia e paz, vividos nessa noite especial de verdadeira magia. Pelo fim da tarde do dia da consoada. O cheirinho a canela espalhava-se pela casa. Minha avó fritava as rabanadas, fazia o creme e aletria onde desenhava traços com canela em pó. Eu e meu irmão de volta dela, esperávamos a hora de rapar o tacho e chupar as cascas do limão e paus de canela.
Nas noites próximas ao Natal, ia-mos para a rua com outros amigos, com o nariz vermelho e as mãos geladas, cantar as boas-festas pelos vizinhos, numa cantilena que era assim:

Vimos dar as boas-festas / Boas-festas vimos dar
Com respeito ao ano novo / Temos muito que contar
Pastores, pastores / Vamos todos a Belém
Adorar o Deus menino / Que nossa Senhora tem

Se nos davam umas moedas, agradecíamos:

A senhora desta casa / É bonita de raiz
Por nos dar a consoada / Tenha um Natal feliz

Se nem a porta abriam, então cantava-mos:

A senhora desta casa / É feia mas não importa
Não nos deu a consoada / Cagamos-lhe aqui á porta
      
Claro que não passávamos das palavras, mas ficávamos tristes por não ter uma guloseima ou uma moeda para juntar ao “bolo” e depois dividir por todos. A noite era fria, bafejava-mos as mãos de volta a casa, onde havia o “borralho”, um balde de zinco com cinzas, que minha avó trazia da padaria “Porto” onde era padeira, no Largo Moinho de Vento.
Na noite da consoada, lá estava na mesa a toalha branca bordada por minha mãe (usada só em dias especiais), com pratos de nozes, avelãs e pinhões, pratinhos de creme, aletria e ainda a travessa das rabanadas. Havia o vinho do Porto, que o Júlio da mercearia oferecia aos clientes e o Bolo-rei, que o senhor Teixeira da “Cunha”, todos os anos dava ao meu pai. Lembro-me bem, quando eu ia à confeitaria em Santa Catarina, entregava-lhe o cartão do meu pai, ele lia e dizia para o empregado: «Embrulha um de quilo para este mariola!».
Para a ceia, vinha sempre a Ermelindinha, uma senhora que vivia sozinha e minha avó sempre convidava. Quando chegava a hora de fazer o molho no prato, com azeite, umas gotas de vinagre, pimenta e muitos alhos, começava a sentir água na boca. Minha avó chegava com a atravessa de batatas, bacalhau, pencas e grelos a fumegar, servia-nos e dizia: «Comam com Deus e bom Natal a todos». E meu pai dizia: «Nesta noite posso estar teso, mas faço tudo p’ra que não falte nada em casa» E acendendo as velas na árvore, beijava cada um de nós dizendo: «Bom Natal a todos». O resto do serão era passado a jogar o Rapa com pinhões. Tratava-se de uma pequena piasca de madeira de quatro faces, cada face tinha uma letra: R de Rapa, T de Tira, D de Deixa, P de põe. A cada jogador era distribuído uma quantidade igual de pinhões, cada um rodava a piasca na sua vez, executando a ordem que lhe cabia em sorte. Partiam-se nozes que se iam comendo, junto com peras e figos secos que a dona Ermelinda trazia sempre.

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COISAS E LOISAS




segunda-feira, 22 de maio de 2017

SÓTÃO DA MEMÓRIA




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mmmigos de tantos anosseu habitatO Meu Natal

Hoje o Natal modernizou-se, perdeu-se um pouco da magia desse dia. Embora sinta a felicidade de ter a mesa cheia com filhos, netos e bisnetos, penso muitas vezes no meu Natal de criança, onde nunca tive a presença de minha mãe, peça fundamental no “meu presépio”, o que me levou mais tarde a escrever:

Ó minha mãe, minha santa / Se pudesses cá voltar
Tinha tanta coisa, tanta / Minha mãe p’ra te contar
Dos filhos tenho meiguices / P’ra compensar teus afectos
Ó minha mãe se tu visses... / Que lindos são os teus netos
Da vida mãe, a pior / São estas saudades de ti
Meu Natal era bem melhor / Se tu estivesses aqui
       
Meu pai, minha avó e meu irmão, eram a minha família numa casa pequenina da rua da Glória. Meu Natal era simples, mas tinha um sabor doce e alegre, mesmo limitado por carências de toda a espécie. Mas isso, só mais tarde pude entender.
Logo no dia da mãe, no feriado de oito de Dezembro, meu pai fazia a árvore de Natal. O pinheiro era plantado em areia num vaso forrado a papel colorido. Eu e meu irmão ajudávamos, pendurando os enfeites que ficavam de uns anos para outros, pingentes, sinos e bolas de vidro coloridas, estrelinhas douradas e pequenos chocolates embrulhados em prata de cor com lacinhos de fitas douradas. Havia ainda anjos recortados em cartão e presos com linha, por fim, era colocado o terminal no carrapito do pinheiro. Passava-se depois à colocação de pequenas velas de cera, metidas em molas de chapa e presas ao pinheiro em locais precisos. Guardavam-se duas para a entrada do presépio. A árvore estava quase pronta, faltavam os fios prateados, os meridianos em volta do nosso mundo. Por fim, a neve que vinha comprimida num pacotinho de celofane, era aberta com cuidado e espalhada por todo o pinheiro como algodão finíssimo. Como era bonita a auréola de luz, que a chama das velas deixava por entre a neve artificial. Depois havia o presépio que meu pai construía com galhos, palha para o telhado, musgo e areia para o chão. Eram então colocadas cuidadosamente nos lugares, as figuras de barro que se comprava na rua d’Assunção. O burro, a vaca e os três reis magos, S. José e Maria, o pastor e o anjo da anunciação. O menino Jesus como só nascia na noite de 24 para 25, era guardado para essa hora. As velas eram acesas só nessa noite e ficavam a arder durante a toda a consoada.

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COISAS E LOISAS




segunda-feira, 15 de maio de 2017

SÓTÃO DA MEMÓRIA




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A corrida ao consumismo chega ao cúmulo de se importarem ideias para gastar o que não se tem. Agora dá-se muito valor aos americanizados dias de S. Valentim e das Bruxas (Halloweem), por exemplo. As grandes superfícies comerciais, possuem corredores com alas inteiras de produtos impensáveis há 50 anos (bem, também não haviam supermercados…). 

Vejam o caso dos cães e gatos, com este súbito amor aos animais (ou moda?), vendem-se almofadas, alcofas, ossos de borracha, champô, escovas, alimentos diversos, lacinhos e outros artefactos. Abrem-se lojas para animais (pet-shop’s), clínicas veterinárias e hospitais e pasmem, hotéis para cães.

Inverteram-se os valores do racionalismo, os cães são agora mais importantes que os seres humanos, quando existem pessoas que dormem pelos passeios e remexem os contentores do lixo em busca de alimentos, em vez dos cães vadios ou os vira-latas do meu tempo. Tantos cãozinhos ao colo das "madames" e tantas crianças para serem adoptadas...

Mesmo a festa mais consagrada à família como o Natal, está a tornar-se uma corrida louca ao consumismo, quantas vezes com desperdícios enormes... Compreendo a euforia dos primeiros anos da revolução de Abril, em que os portugueses finalmente tiveram acesso a tudo que nunca tinha tido, desde as revistas pornográficas aos filmes proibidos como o “Último tango em Paris”. Já não era preciso ir comprar às escondidas em Cedofeita, no Sérgio alfarrabista, o “Copacabana Posto 6” da Cassandra Rios, nem ter 21 anos de idade para ver “Helga, o segredo da maternidade”. Também minha alegria foi enorme, quando pude comprar no Natal de 77, com o primeiro 13º mês que recebi na vida, uma caixa de “Legos” para dar ao meu filho. Recordo que fui eu quem brincou toda a noite, com aquelas peças de encaixar que me fascinavam há tantos anos.

       



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COISAS E LOISAS




segunda-feira, 8 de maio de 2017

COISAS E LOISAS




SÓTÃO DA MEMÓRIA




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A minha geração inventava os seus brinquedos de criança, desde a bola de trapos ao carro de rolamentos. A de hoje tem toda a panóplia de tecnologia, desde jogos de computadores, leitores de mp3, filmes de vídeo, telemóveis de 4ª, 5ª e 6ª geração, etc., mas não sabem como é bom viver ao ar livre, andar descalço, correr com o vento na cara.

A lembrança da opressão e das carências do passado, persegue os pais e avós de hoje, quando a liberdade e a democracia surgiram de braço dado com insegurança a falta de respeito e a quebra de princípios fundamentais da família. As crianças de hoje tornaram-se super protegidas, autênticos bibelot’s, já não se sentam no colo das mães nos transportes públicos e ocupam lugar deixando as mães em pé. Não vão de saca a tiracolo para a escola com os livros e a ardósia, hoje são os pais que carregam a mochila.

Os meninos agora não fazem arranhões que se curavam com uma folha de couve e azeite, não trazem os joelhos sujos de terra, nem põem papas de linhaça ou papel mata-borrão nas pisaduras, nem sequer comem sopas de vinho com ovos e açúcar para a anemia ou óleo de fígado de bacalhau para o raquitismo. Agora quando fazem dói-dói, têm pomadas, anti inflamatórias, antibióticos, vitaminas e outros fármacos. Os bebés não andam ao colo das mães, hoje há carrinhos, alcofas, sacos de lona com presilhas e cadeirinhas diversas.

As mamãs preferem dar leite em pó e outros produtos substitutos aos bebés, umas porque não têm tempo de dar de mamar aos filhos, outras porque têm medo de deformar a estética dos seios. Mas as crianças são mais felizes?

Ainda bem que juventude de hoje não enfrenta o medo cruel da guerra aos vinte anos, nem o desconforto de viver no obscurantismo dum pais decrépito e analfabeto. Mas, sabem enfrentar o dia de amanhã? Ou tornaram-se nuns meninos mimados e arrogantes, a quem tudo aparece feito sem qualquer esforço e às vezes com tanto exagero, que os faz procurar para a vida respostas em atitudes cobardes como a droga?

Na minha geração três pessoas a conversar no passeio, era considerado um ajuntamento e logo o polícia dizia: “Toca a circular, toca a circular”. Claro que também era proibido beijar na via pública, mas o amor é melhor hoje? Ama-se mais que antigamente?

Sei muito bem que as preocupações hoje são diferentes, não acredito no estigma da geração rasca. A geração de hoje tem o que lhe dão, a falta de esperança, o desemprego, a insegurança, ainda a angústia de viver com o crédito da habitação a altos juros, a inflação no topo e o medo de constituir família, ter filhos e viver.





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