continuação
O resto dos dias de Dezembro, eram passados
numa ansiedade constante á espera da grande noite. Ficou-me até hoje essa
sensação boa que me traz o Natal, não pela sua vertente religiosa (que me
perdoem os crentes), mas pelo sentido humano da união familiar,
o carinho, os afagos do meu pai, pela harmonia e paz, vividos nessa noite
especial de verdadeira magia. Pelo fim da tarde do dia da consoada. O cheirinho
a canela espalhava-se pela casa. Minha avó fritava as rabanadas, fazia o creme
e aletria onde desenhava traços com canela em pó. Eu e meu irmão de volta dela, esperávamos a
hora de rapar o tacho e chupar as cascas do limão e paus de canela.
Nas noites próximas ao
Natal, ia-mos para a rua com outros amigos, com o nariz vermelho e as mãos geladas,
cantar as boas-festas pelos vizinhos, numa cantilena que era assim:
Vimos dar as boas-festas / Boas-festas vimos dar
Com respeito ao ano novo / Temos muito que contar
Pastores, pastores / Vamos todos a Belém
Adorar o Deus menino / Que nossa Senhora tem
Se nos davam umas moedas,
agradecíamos:
A senhora desta casa / É bonita de raiz
Por nos dar a consoada / Tenha um Natal feliz
Se nem a porta abriam,
então cantava-mos:
A senhora desta casa / É feia mas não importa
Não nos deu a consoada / Cagamos-lhe aqui á porta
Claro que não passávamos
das palavras, mas ficávamos tristes por não ter uma guloseima ou uma moeda para
juntar ao “bolo” e depois dividir por todos. A noite era fria, bafejava-mos as
mãos de volta a casa, onde havia o “borralho”, um balde de zinco com cinzas,
que minha avó trazia da padaria “Porto” onde era padeira, no Largo Moinho de
Vento.
Na noite da consoada, lá
estava na mesa a toalha branca bordada por minha mãe (usada só em dias
especiais), com pratos de nozes, avelãs e pinhões, pratinhos de creme, aletria
e ainda a travessa das rabanadas. Havia o vinho do Porto, que o Júlio da
mercearia oferecia aos clientes e o Bolo-rei, que o senhor Teixeira da “Cunha”,
todos os anos dava ao meu pai. Lembro-me bem, quando eu ia à confeitaria em Santa Catarina,
entregava-lhe o cartão do meu pai, ele lia e dizia para o empregado: «Embrulha
um de quilo para este mariola!».
Para a ceia, vinha sempre
a Ermelindinha, uma senhora que vivia sozinha e minha avó sempre convidava.
Quando chegava a hora de fazer o molho no prato, com azeite, umas gotas de
vinagre, pimenta e muitos alhos, começava a sentir água na boca. Minha avó
chegava com a atravessa de batatas, bacalhau, pencas e grelos a fumegar,
servia-nos e dizia: «Comam com Deus e bom Natal a todos». E meu pai dizia:
«Nesta noite posso estar teso, mas faço tudo p’ra que não falte nada em casa» E
acendendo as velas na árvore, beijava cada um de nós dizendo: «Bom Natal a
todos». O resto do serão era passado a jogar o Rapa com pinhões. Tratava-se de uma
pequena piasca de madeira de quatro faces, cada face tinha uma letra: R de
Rapa, T de Tira, D de Deixa, P de põe. A cada jogador era distribuído uma
quantidade igual de pinhões, cada um rodava a piasca na sua vez, executando a
ordem que lhe cabia em
sorte. Partiam-se nozes que se iam comendo, junto com peras e
figos secos que a dona Ermelinda trazia sempre.
continua