segunda-feira, 24 de julho de 2017

SÓTÃO DA MEMÓRIA


Continuação

Numa das páginas do programa ao S. João da Lapa/59, lia-se a Marcha da Lapa, um original do José Guimarães e Resende Dias dizia assim:
    
Olhai como o nosso bairro é lindo
Recanto infindo / Que dá conforto
Olhai este canteiro singelo
Que é o mais belo / Deste bom Porto
Bairro da Lapa é um tesouro / Tão cheio de majestade
Imponente miradouro / A dominar a cidade

O estribilho era assim:

Bairro da Lapa / Meu rubi a cintilar
Tens a graça popular / Nas noites de S. João
Bairro da Lapa / Oh meu cantinho adorado
Onde até o Rei Soldado / Tem guardado o coração. 

Já lá vão tantos anos, mas recordo-me ainda desse S. João de 1959 foi assim:
A azáfama tinha começado logo pela manhã, quando acordei com a minha avó Ana a chamar:
— Ò Amélinha ­­veja lá, não se esqueça de ir aos pimentos­ e encomendar a broa ao “Mouco”!
Era sempre assim no dia de S. João, havia pimentos e sardinha assada, caldo verde e broa. Mais à noitinha era a vez das torradas com café, feito nas fogueiras ao longo da rua.
A Amélia “manca” como lhe chamavam, lá ia rua da Glória abaixo à tenda da Zirinha hortaliceira. A Amélinha era uma viúva muito prestável com os vizinhos. Tinha três filhos, o Xico o mais pequenito, o mais velho que estava para Lisboa (era raro vir ao Porto) e o Zeca que trazia algum dinheiro da venda dos jornais, saltava de eléctrico em eléctrico subindo a Lapa, apregoando: «Olha o Norte!... Olha o Notícias!... »A pensão que recebia do acidente que sofreu na fábrica, era uma miséria, mas a Amélinha era querida por todos, principalmente por aquelas que tinham vergonha de ir ao “Prego” e lhe pediam o favor do recado.                     
A vida era muito difícil nessa altura, assim, não faltavam diálogos como estes:
Ó Sr. Reis dê-me lá os cem mil reis, a criatura que me mandou tem que pagar a renda, depois, é só por uns dias... Implorava a Amélinha e respondia o Sr. Reis:
— Vou fazer-lhe o jeito, mas veja-me aquelas cautelas da D. Adosinda, desde Abril que não paga juros e já estamos em Junho!
Esta D. Adosinda não era casada, mas um automóvel “Singer” parava uma vez por semana no fundo rua e um senhor de chapéu preto subia até à sua casa e ficava lá até tarde. Nós, os putos, ficávamos a rodear o carro ofuscados pelo brilho dos cromados, olhando os nossos rostos que espelhavam na pintura, admirávamos o luxo dos assentos em pele. Depois no dia seguinte, a D. Adosinda vinha à janela de flor no cabelo e atirava “à guerrilha” rebuçados, por no dia anterior ter-mos tomado conta do carro do Sr.?.            
Ajudava todos que lhe batiam à porta; Uma receita para aviar na farmácia. Um desmancho de uma gravidez indesejada. Um marido desempregado ou o fiado cortado na mercearia. Por isso lá na rua era tratada por senhora dona Adosinda. 

continua
 



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