segunda-feira, 31 de julho de 2017

SÓTÃO DA MEMÓRIA



continuação       

Mas vamos ao S. João.
Nesse dia a nossa rua estava toda engalanada de ramos de palmeiras que faziam arco, presas com arame a meio e na junção das pontas, um balão. Depois um festão colorido ligava os vários arcos de uma ponta a outra da rua. Um grande balão iluminado, feito com arames em forma de pipo e papel de seda, estava pendurado à porta do tasco da Sãozinha e dizia: ”Vinhos e Petiscos”. O Festão era feito aos fins de tarde, já andavam a fazê-lo desde fins de Março. A corda era esticada ao longo da rua, com a goma feita de farinha, colava-se o papel de seda às cores. Logo atrás vinham outros a dar golpes de tesoura muito certinhos, por fim o Mário estofador, com um aparelho de fazer as molas dos sofás, dava a manivela torcendo a corda, até o festão ficar em espiral. Faziam-se também bambolins, mas para isso, o Sr. Alfredo da tipografia, trazia o papel já cortado às tiras, depois era só colar elo a elo em cores alternadas como um cadeado.
Junto ao palanque erguia-se o “Bufete” e ao lado era a cabina de som, onde o Fernando punha os discos no gira-discos e tratava da publicidade como:

«Prefira produtos da mercearia Sousa, com origem nas melhores procedências, António Sousa, rua da Glória 84, com o telefone 457892».

Também se dedicavam discos aos vizinhos e então ouvia-se:

«Um anónimo dedica à menina Judite o disco que se segue».

Servia também para chamar, por exemplo:

«Atenção Sr. Vieira, atenção Sr. Vieira, a sua mulher procura-o aqui junto à cabina de som».

Também para agradecer, assim:

«A comissão de festa, agradece ao Sr. Amaral carvoeiro, o seu donativo para a presença da orquestra “Os Boémios”, que abrilhantarão o baile neste recinto do S. João da Lapa».
     
Minha avó preparava a assadeira para levar á padaria do “Mouco”, temperando o anho com azeite e colorau. Sentia-se no ar um cheiro bom a loureiro e alhos, coentros e alecrim. Guardo ainda a memória dos aromas, dos cheiros caseiros da infância que nunca se esquecem, que vão desde o cheiro ao fumo do carvão, até ao cheirinho dos pêssegos na fruteira.
Durante a semana, tinham andado os homens com rebanhos de carneiros pelas ruas, as mulheres juntavam-se aos pares para escolher e comprar o anho a meias. Ali mesmo na rua, depois de tosquiados á tesoura e a lã amarrada, com a ajuda de um alguidar de barro e facas, os homens matavam e esfolavam os carneiros. As moscas zumbiam, voando junto ao alguidar com as entranhas dos bovídeos á mostra e as mulheres deitavam baldes de água pela rua abaixo para lavar o sangue. Não era bonito de ver, mas estava-mos habituado àquele espectáculo insalubre. 
Na véspera de S. João á tarde, estava tudo pronto para a noitada, ouvia-se nos altifalantes de corneta, alugados à Ideal Rádio:

«Um, dois. Um, dois. Experiências de microfones...».

A noite chegava finalmente e o “Pirata” electricista ligava as luzes da rua, era uma alegria a nossa festa, quando do céu começavam a cair as orvalhadas.


continua


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